
O que é codependência, e quem a tem?
A história de Jéssica
O sol brilhava, e o dia estava lindo quando o conheci.
Depois tudo enlouqueceu.
– Georgianne, casada com um alcoólico
Esta é a história de Jéssica. Vou deixar que ela a conte.
Sentei-me à cozinha, tomando café, pensando no trabalho doméstico que ainda tinha por fazer. Lavar a louça. Tirar pó. Lavar roupas. A lista era interminável, mas eu não conseguia começar. Era coisa demais para pensar.
Parecia impossível fazer aquilo tudo. Assim como minha vida, pensei. O cansaço, uma sensação conhecida, apossou-se de mim. Fui para o quarto. Antes um luxo, cochilar transformara-se agora numa necessidade. Dormir era só o que eu conseguia fazer. Para onde tinha ido minha motivação? Eu costumava ter excesso de energia. Agora, maquiar-me ou pentear os cabelos era um esforço – um esforço que eu frequentemente deixava de fazer.
Deitei-me na cama e caí num sono pesado. Quando acordei, meus primeiros pensamentos e sensações foram dolorosos. Isso também não era novidade. Não tinha certeza do que doía mais: a certeza de que meu casamento estava acabando – o amor terminara, aniquilado pelas mentiras, pela bebida, pelas decepções e pelos problemas financeiros; a raiva amarga que sentia de meu marido – o homem que causara tudo isso; o desespero que sentia porque Deus, em quem eu confiava, me traíra, permitindo que isso acontecesse; ou a mistura de medo, impotência e desesperança que impregnava todas as outras emoções.
Desgraçado, pensei. Por que tem de beber? Por que não pôde tornar-se sóbrio mais cedo? Por que tinha de mentir? Por que não podia amar-me tanto quanto eu o amava? Por que não parou de beber e mentir anos atrás, quando eu ainda me importava? Nunca tive intenção de me casar com um alcoólico. Meu pai tinha sido um. Tentei escolher cuidadosamente meu marido. Grande escolha. O problema de Frank com a bebida ficou evidente em nossa lua de mel, quando ele deixou nosso quarto de hotel à tarde e só voltou às 6h30 da manhã seguinte. Por que não enxerguei isso então? Olhando para trás, os sinais eram claros. Que tola eu fui. “Oh, não, ele não é um alcoólico. De jeito nenhum”, defendia-o sempre. Acreditei em suas mentiras. Acreditei em minhas mentiras. Por que não o deixei, não me divorciei? Por culpa, medo, falta de iniciativa e indecisão. Além disso, eu já o havia deixado uma vez. Quando nos separamos eu só sentia depressão, pensando nele e me preocupando com dinheiro. Sou uma desgraçada.
Olhei o relógio. Quinze para as três. As crianças chegariam logo da escola. E depois ele chegaria e esperaria o jantar. Não fiz nenhum trabalho doméstico hoje. Nunca consigo fazer nada. E a culpa é dele, pensei. A CULPA É DELE! De repente fiquei emotiva. Será que meu marido realmente estava no emprego? Talvez ele tivesse levado outra mulher para almoçar. Talvez estivesse tendo um caso. Talvez tivesse saído mais cedo para beber. Talvez estivesse no escritório, criando confusão. Por quanto tempo mais ele seguraria o emprego? Uma semana? Um mês? Como sempre, logo se demitiria ou seria demitido.
O telefone tocou, interrompendo minha ansiedade. Era uma amiga e vizinha. Conversamos um pouco, e lhe contei sobre meu dia.
– Vou ao Al-Anon amanhã – disse ela. – Quer vir comigo?
Já tinha ouvido falar do Al-Anon. Um grupo de pessoas casadas com alcoólicos. Vinha-me à mente a visão de “mulherzinhas” reunidas, falando sobre as bebedeiras dos maridos, perdoando-os e pensando em pequenas maneiras de ajudá-los.
– Vamos ver. Tenho muita coisa para fazer – expliquei, sem mentir.
Senti-me insultada e mal pude ouvir o restante da conversa. Claro que não queria ir ao Al-Anon. Eu tinha ajudado demais. Já não tinha feito o bastante por ele? Fiquei furiosa com a sugestão de que tinha de fazer mais e continuar a tentar encher esse buraco sem fundo de necessidades insatisfeitas que chamamos de casamento. Estava cansada de carregar o fardo e sentir-me responsável pelo sucesso ou fracasso do nosso relacionamento. O problema é dele, pensei. Deixe que ele encontre a solução. Deixe-me fora disso. Não me peça mais nada. Apenas faça com que ele melhore, e eu me sentirei melhor.
Depois de desligar o telefone, arrastei-me até a cozinha para preparar o jantar. De qualquer modo, não sou eu quem precisa de ajuda, pensei. Eu não bebo, não uso drogas, não perco empregos e nem minto ou engano a quem amo. Mantenho a família unida com o maior sacrifício. Tenho pagado as contas, mantido um lar com um orçamento apertado, estado sempre ali para qualquer emergência (e, casada com um alcoólico, emergência é o que não falta), atravessado a maioria das crises sozinha e preocupada ao ponto de frequentemente adoecer. Não, decidi, não sou a irresponsável aqui. Não há nada errado comigo. Tenho apenas de continuar, começar a fazer minhas tarefas diárias. Não preciso de reuniões para fazer isso. Me sentiria culpada de sair, quando tenho todo esse trabalho para fazer em casa. Deus sabe que não preciso de mais culpas. Amanhã me levantarei e me ocuparei. As coisas vão melhorar – amanhã.
Quando as crianças chegaram, vi-me gritando com elas. Isso não surpreendeu ninguém. Meu marido era o bonzinho, o cara legal. A carrasco era eu. Tentei ser agradável, mas era difícil. A raiva estava bem embaixo da superfície. Por muito tempo, tive que tolerar muito. Não queria ou não era mais capaz de tolerar qualquer coisa. Estava sempre na defensiva, sentia que de alguma forma lutava pela minha vida. Mais tarde descobri que era verdade.
Quando meu marido chegou, esforcei-me em preparar o jantar. Comemos, mal nos falando.
– Tive um dia agradável – disse Frank.
O que ele quer dizer?, pensei. O que realmente fez? Pelo menos estava no trabalho? Além disso, quem se importa?
– Que bom – retruquei.
– Como foi seu dia? – perguntou ele.
Que diabo acha que foi?, pensei. Depois de tudo que me fez, como espera que meus dias sejam? Lancei-lhe um olhar ameaçador, forcei um sorriso e disse:
– Meu dia foi bom. Obrigada por perguntar.
Frank olhou para o outro lado. Ele ouviu o que eu não estava dizendo, mais do que o que eu dizia. Ele sabia que era melhor não dizer mais nada; e eu também. Estávamos quase sempre a um passo de uma discussão irada, uma reedição de ofensas passadas, gritando ameaças de divórcio. Costumávamos desabafar em brigas, mas nos cansamos delas. Então fazíamos isso silenciosamente.
As crianças interromperam nosso silêncio hostil. Meu filho disse que queria ir a um parque que ficava a alguns quarteirões de casa. Eu disse que não, não queria que ele fosse sem o pai ou sem mim. Ele resmungou que queria e que iria sozinho, e que eu nunca o deixava fazer nada. Gritei que ele não ia e ponto final. Ele gritou, por favor, tenho de ir, todos os meus amigos vão. Como sempre, cedi. Está bem, vá, mas cuidado, avisei. Senti como se tivesse sido derrotada. Sempre me sentia derrotada – com meus filhos e com meu marido. Ninguém jamais me ouvia, ninguém jamais me levava a sério. Eu não me levava a sério.
Depois do jantar, lavei a louça enquanto meu marido assistia à televisão. Como sempre, eu trabalho e você se diverte. Eu me preocupo, e você descansa. Eu ligo, e você, não. Você se sente bem; eu sofro. Desgraçado. Atravessei a sala várias vezes, bloqueando de propósito a frente da televisão, lançando-lhe secretamente olhares de raiva. Ele me ignorou. Depois de me cansar disso, voltei à sala, suspirei e disse que ia varrer o jardim. Isso é trabalho de homem, expliquei, mas acho que vou ter de fazer eu mesma. Ele disse que faria depois, eu disse que depois nunca chega, não posso esperar, já estou envergonhada do quintal, esqueça, estou habituada a fazer tudo, vou fazer isso também. Ele disse está bem, vou esquecer. Saí com raiva e andei em volta do jardim. Cansada como estava, fui cedo para a cama. Dormir com meu marido tornara-se tão estressante quanto nossos momentos acordados. Também não queríamos conversa, cada um virando-se para um lado, o mais longe possível do outro, ou então ele tentaria – como se tudo estivesse bem – fazer sexo comigo. De qualquer maneira, era tenso. Se virávamos as costas um para o outro, ficava lá, deitada, com pensamentos confusos e desesperados.
Se ele tentava tocar-me, eu congelava. Como podia desejar fazer amor comigo? Como podia tocar-me, como se nada tivesse acontecido? Geralmente, eu o empurrava, dizendo: “Não, estou muito cansada.” Às vezes, eu concordava por estar com vontade. Geralmente, porém, se fazíamos sexo era porque me sentia obrigada a cuidar de suas necessidades sexuais, e culpada se não o fizesse. De qualquer modo, o ato sexual era sempre insatisfatório, psicológica e emocionalmente. Contudo, eu dizia a mim mesma que não me importava. Não ligava. Não mesmo. Havia muito tempo eu tinha trancado meus desejos sexuais. Havia muito tempo tinha trancado a necessidade de dar e receber amor. Congelara aquela parte de mim que sentia e se importava. Tivera de fazer isso para sobreviver.
Esperava tanto desse casamento. Tinha tantos sonhos para nós. Nenhum deles se realizou. Eu havia sido enganada, traída. Meu lar e minha família – o lugar e as pessoas que deviam ser carinhosas e confortadoras, um ninho de amor – tornaram-se uma armadilha. E eu não conseguia encontrar a saída. Talvez as coisas melhorem, continuava dizendo a mim mesma. Afinal de contas, os problemas são culpa dele. Ele é um alcoólico. Quando ele melhorar, nosso casamento também melhorará. Mas eu já estava começando a duvidar disso. Ele estava sóbrio e frequentando os Alcoólicos Anônimos havia seis meses. Estava melhorando. Eu não. Sua recuperação era mesmo suficiente para me fazer feliz? Até ali, sua sobriedade não parecia estar mudando a maneira como eu me sentia: seca, usada e frágil aos 32 anos. O que acontecera ao nosso amor? O que acontecera comigo?
Um mês depois, comecei a suspeitar do que logo eu saberia ser a verdade. Até então, a única coisa que mudara era que eu me sentia pior. Minha vida tinha chegado a um beco sem saída; eu queria que ela terminasse. Não tinha esperanças de que as coisas melhorassem; já nem sabia mais o que estava errado. Eu não tinha qualquer meta, a não ser cuidar de outras pessoas, e não estava me saindo bem nisso. Estacionara no passado e me sentia me sentia apavorada quanto ao futuro. Deus parecia ter me abandonado. Sentia-me culpada o tempo todo, achava que ia ficar louca. Algo horrível, algo que não podia explicar havia acontecido comigo. Algo que se apoderou de mim e arruinou a minha vida. De alguma forma, eu tinha sido afetada pela bebedeira dele, e a forma como isso me afetara tornou-se um problema meu. Já não importava de quem era a culpa. Eu havia perdido o controle.
Conheci Jéssica nessa época de sua vida. Ela estava prestes a aprender três princípios fundamentais:
1) Ela não estava louca; era uma codependente. Alcoolismo e outros distúrbios compulsivos são realmente doenças familiares. A forma como a doença afeta a outros membros da família é chamada codependência.
2) Uma vez afetadas pela codependência, é como se ela assumisse vida própria. É como contrair pneumonia ou um vício destrutivo. Quando pega, fica.
3) Se quiser livrar-se disso, você terá de fazer algo para melhorar. Não importa de quem seja a culpa. Sua codependência agora é problema seu; resolver seus problemas é responsabilidade sua. Se você é codependente, precisa encontrar sua própria recuperação ou seu processo de cura. Para começar a curar-se, é bom compreender a codependência e certas atitudes, emoções e comportamentos que geralmente a acompanham. Também é importante mudar algumas dessas
atitudes e comportamentos e compreender o que se deve esperar quando essas mudanças ocorrerem.
Este livro ajudará nessas compreensões e encorajará as mudanças. Tenho o prazer de dizer que a história de Jéssica teve um final feliz – ou um novo começo. Ela melhorou. Começou a viver sua própria vida. Espero que você também consiga.
Do livro: Codependência Nunca Mais, Pare de Controlar os Outros e Cuide de Você Mesmo, [recurso eletrônico] Melody Beattie, 5ª Edição, Viva Livros, 2017