
Princípios básicos para cuidar de si mesmo
Aprenda a arte da aceitação
Gostaria de propor que enfrentássemos a realidade.
– Bob Newhart, do programa de TV Bob
Newhart Show
A aceitação da realidade é desejável e incentivada pela maioria das pessoas sãs. É o objetivo de muitas terapias, como deveria ser. Enfrentar e chegar a um acordo com o que é, é um ato benéfico. A aceitação traz paz. E frequentemente é a virada para a mudança. É também muito mais fácil dizer do que fazer.
As pessoas – não apenas os codependentes – enfrentam a cada dia a perspectiva de aceitar ou rejeitar a realidade daquele dia em particular e de suas circunstâncias presentes. Temos muitas coisas para aceitar no curso normal da vida, desde o momento em que abrimos os olhos, de manhã, até fechá-los, à noite. Nossas circunstâncias presentes incluem quem somos, onde moramos, com quem moramos ou não moramos, onde trabalhamos, nosso meio de transporte, quanto dinheiro temos, quais são nossas responsabilidades, o que faremos para nos divertir e qualquer problema que surgir. Em certos dias é fácil aceitar essas circunstâncias. Acontece naturalmente. Nosso cabelo está jeitoso, nossos filhos se comportam bem, o chefe está de bom humor, estamos bem de dinheiro, a casa está limpa, o carro funciona e gostamos de nosso cônjuge ou amante.
Sabemos o que esperar, e o que esperamos é aceitável. Tudo bem. Em outros dias, contudo as coisas podem não correr tão bem. O freio do carro dá defeito, o teto pinga, as crianças enchem a paciência, quebramos um braço, perdemos o emprego, nosso cônjuge ou amante diz que não nos ama mais. Algo aconteceu. Temos um problema. Está todo diferente. Nós estamos perdendo algo. Nossas presentes circunstâncias já não são tão confortáveis como eram.
As circunstâncias foram alteradas, e temos que aceitar uma nova situação. Podemos inicialmente reagir negando ou resistindo à mudança, ao problema ou à perda. Queremos que as coisas fiquem do jeito que estavam. Queremos que o problema seja resolvido rapidamente. Queremos sentir-nos confortáveis de novo. Queremos saber o que esperar. Não estamos em paz com a realidade. É desconcertante. Perdemos nosso equilíbrio temporariamente.
Os codependentes nunca sabem o que esperar, principalmente se temos um relacionamento íntimo com um alcoólico, um viciado em drogas, um criminoso, um jogador, ou qualquer outra pessoa com um problema sério ou um distúrbio compulsivo. Somos bombardeados com problemas, perdas e mudanças. Deparamo-nos com janelas quebradas, encontros não cumpridos, promessas falsas e mentiras deslavadas. Perdemos a segurança financeira, a segurança emocional, a fé nas pessoas que amamos, a fé em Deus, a fé em nós mesmos. Podemos perder nosso bem-estar físico, nossos bens materiais, nossa capacidade de desfrutar de sexo, nossa reputação, nossa vida social, nossa carreira, nosso autocontrole, nossa autoestima e a nós mesmos.
Alguns de nós perdemos o respeito e a confiança nas pessoas que amamos. Às vezes, perdemos até o amor e o compromisso com a pessoa que antes amávamos. Isso é comum. É uma consequência natural e normal da doença. O folheto Um guia para a família do alcoólico discute isso:
“O amor não pode existir sem a dimensão da justiça. O amor também deve ter compaixão, o que significa aguentar ou sofrer com a pessoa. A compaixão não significa sofrer por causa da injustiça de alguém. Mas a injustiça quase sempre é sofrida repetidamente pelas famílias de alcoólicos.”1
Embora essa injustiça seja comum, nem por isso é menos dolorosa. A traição pode ser esmagadora quando alguém que amamos faz coisas que nos ferem profundamente.
Talvez a perda mais dolorosa que muitos de nós codependentes enfrentamos é a perda de nossos sonhos, de nossa esperança e, às vezes, das expectativas idealistas para o futuro que a maioria das pessoas tem. Essa perda pode ser a mais difícil de aceitar. Quando vimos nosso bebê pela primeira vez, tínhamos certas esperanças para ele ou ela. Essas esperanças não incluíam qualquer problema com álcool ou outras drogas. Nossos sonhos não incluíam isso. Quando nos casamos, nós sonhamos. O futuro com nosso(a) amado(a) estava cheio de maravilhas e promessas. Era o começo de algo grande, algo adorável, algo que há muito tempo esperávamos. Os sonhos e as promessas podem ter sido ou não expressos em palavras, mas para a maioria de nós estavam lá.
“Para cada casal o começo é diferente”, escreveu Janet Woititz num artigo do livro Co-Dependency, An Emerging Issue [Codependência: uma questão relevante]. “Mesmo assim, o processo que ocorre no relacionamento matrimonial quimicamente dependente é essencialmente o mesmo. Vamos examinar o ponto de partida, os votos matrimoniais. A maioria das cerimônias de casamento inclui as seguintes declarações: Para o melhor ou pior – na riqueza ou na pobreza – na doença e na saúde – até que a morte nos separe. Talvez seja aí que o problema comece. Você realmente quis dizer isso quando o disse? Se eu soubesse então que iria ter não o melhor mas o pior, não a saúde mas a doença, não a riqueza mas a pobreza, o amor que sentia compensaria tudo isso? Você pode dizer que sim, mas eu duvido. Se fosse mais realista do que romântico, você poderia ter interpretado os votos para significar: através do mal assim como do bem, presumindo que os maus tempos seriam transitórios e os bons permanentes. O contrato foi feito de boa-fé. Não há o benefício da compreensão tardia.”2
Os sonhos estavam ali. Muitos de nós nos agarramos por muito tempo neles, levando-os através de perdas e decepções, uma após a outra. Voamos diante da realidade, acenando com esses sonhos para a verdade, recusando-nos a acreditar ou a aceitar outra coisa. Mas um dia a verdade nos prendeu e não quis mais aceitar a negação. Não foi isso o que desejamos, planejamos, pedimos ou esperamos. Nunca seria. O sonho estava morto e nunca voltaria a viver.
Alguns de nós podemos ter tido nossos sonhos e esperanças esmagados. Alguns de nós podemos estar enfrentando o fracasso de algo extremamente importante como um casamento ou outro relacionamento importante. Sei que há muita dor na perspectiva de perder um amor ou perder os sonhos que tínhamos. Não há nada que possamos fazer para tornar isso menos doloroso ou diminuir nossa dor. Fere-nos profundamente ter nossos sonhos destruídos pelo alcoolismo ou qualquer outro problema. A doença é mortal. Mata tudo, incluindo nossos sonhos mais nobres. “A dependência química destrói vagarosa, mas completamente”, conclui Janet Woititz.3
Que verdade. Que triste verdade. E nada morre mais lentamente ou mais dolorosamente do que um sonho.
Até mesmo a recuperação traz perdas, mais mudanças que devemos lutar para aceitar.4 Quando o cônjuge alcoólico fica sóbrio, as coisas mudam. Os padrões de relacionamento mudam. Nossas características de codependentes, as formas com que fomos afetados, são perdas de autoimagem que devemos enfrentar. Embora sejam mudanças boas, ainda são perdas – perdas de coisas que podem não ter sido desejáveis, mas que talvez se tenham tornado estranhamente confortáveis. Esses padrões se tornam um fato de nossas circunstâncias atuais. Pelo menos sabíamos o que esperar, mesmo que isso significasse não esperar nada.
As perdas que muitos codependentes devem enfrentar e aceitar diariamente são enormes e contínuas. Não são os problemas comuns e as perdas que a maioria das pessoas enfrenta na vida normal. São perdas e problemas causados por pessoas que amamos. Embora os problemas sejam resultado direto de uma doença, de uma condição ou um distúrbio compulsivo, eles podem aparecer como atos deliberados e maliciosos.
Estamos sofrendo nas mãos de alguém que amamos e em quem confiamos.
Continuação no próximo artigo
Do livro: Codependência Nunca Mais, Pare de Controlar os Outros e Cuide de Você Mesmo, [recurso eletrônico] Melody Beattie, 5ª Edição, Viva Livros, 2017