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Des-dependência

Princípios básicos para cuidar de si mesmo

Des-dependência


“O que está havendo comigo?”, perguntou ela.
“Será que preciso de um peso morto estendido em minha cama para me sentir bem comigo mesma?

– Alice B., codependente que foi casada por duas vezes com alcoólicos


“Sou independente de verdade – enquanto estiver em um relacionamento”, disse uma policial, depois de se envolver várias vezes com homens emocionalmente desajustados.
“Meu marido fica deitado no sofá o tempo todo, bêbado, e há dez anos não traz um tostão para casa. Quem precisa disso?”, perguntou a diretora de uma grande organização de serviços humanos. “Eu preciso”, acrescentou ela, respondendo à própria pergunta. “Mas por quê? E para quê?”

Certa tarde, recebi o telefonema de uma mulher que entrara recentemente para o Al-Anon. Era casada, trabalhava em meio expediente como enfermeira, assumira toda a responsabilidade de criar os dois filhos e fazia todo o trabalho de casa, incluindo reparos e finanças. “Quero separar-me de meu marido”, soluçou ela. “Não o aguento mais, nem a seus abusos. Mas diga-me, por favor, diga-me: acha que sou capaz de cuidar de mim mesma?”

As palavras variam, mas o sentimento é o mesmo. “Não estou feliz vivendo com essa pessoa, mas não creio que possa viver sem ela. Não consigo, por alguma razão, encontrar forças para enfrentar e lidar com o que todo ser humano deve enfrentar ou continuar a fugir: a solidão de ser total e unicamente responsável por tomar conta de si mesmo. Não acredito que eu seja capaz de tomar conta de mim mesmo. Não estou seguro de que queira fazê-lo. Preciso de uma pessoa, qualquer pessoa, para amortecer o choque dessa condição solitária. Não importa a que preço.”

Colette Dowling descreveu esse tipo de pensamento em O complexo de Cinderela. Penelope Russiannoff discutiu isso em Why do I think I’m Nothing Without a Man? [Por que acho que não sou nada sem um homem?] Eu mesma disse isso muitas vezes.
Embora os codependentes pareçam frágeis e desamparados ou fortes e poderosos, a maioria de nós está assustada, carente; crianças vulneráveis que sofrem e se desesperam para serem amadas e cuidadas.
Essa criança dentro de nós acha que não somos merecedores de amor e que nunca encontraremos o carinho que procuramos; às vezes, essa criança vulnerável se torna desesperada demais. Certas pessoas nos abandonaram, emocional e fisicamente. Certas pessoas nos rejeitaram. Certas pessoas abusaram de nós, decepcionaram-nos. Certas pessoas nunca estavam presentes para nós; elas não viram, ouviram ou atenderam às nossas necessidades. Podemos chegar a acreditar que ninguém nunca estará presente para nós. Para muitos de nós, até Deus parece ter ido embora.

Temos estado presentes para muitas pessoas. A maioria de nós deseja desesperadamente alguém que finalmente esteja presente para nós. Precisamos de alguém, de qualquer um, para nos resgatar da completa solidão, da alienação e da dor. Queremos algo bom, e isso não está em nós. A dor está em nós. Sentimo-nos desesperados e incertos. E os outros
parecem poderosos e seguros. Concluímos que a mágica deve estar neles. Então nos tornamos dependentes dessas pessoas. Tornamo-nos dependentes dos cônjuges, amantes, amigos, pais ou filhos. Tornamo-nos dependentes de sua aprovação. Tornamo-nos dependentes de sua presença. Tornamo-nos dependentes de sua necessidade por nós. Tornamo-nos dependentes de seu amor, embora acreditemos que nunca poderemos recebê-lo; achamos que não merecemos amor e que ninguém nunca nos amou de maneira que satisfizesse nossas necessidades.

Não estou dizendo que os codependentes são seres peculiares porque desejam e precisam de amor e aprovação. A maioria das pessoas deseja ter um relacionamento amoroso, quer ter uma pessoa especial em sua vida. A maioria das pessoas precisa e quer ter amigos. Elas querem que as pessoas em suas vidas as amem e apreciem. Esses desejos são naturais e saudáveis. Uma certa dependência emocional está presente na maioria dos relacionamentos, incluindo os mais saudáveis.1 Mas muitos homens e mulheres não apenas querem e desejam as pessoas – nós precisamos delas. E podemos tornar-nos manipulados e controlados por essa necessidade.

Precisar demais das pessoas pode causar problemas. As pessoas se transformam na chave de nossa felicidade. Acredito que concentrar-nos em outros, o pôr nossas vidas na órbita de outras pessoas, esteja ligado à codependência e deriva-se de nossa insegurança emocional. Creio que essa incessante procura de aprovação a que nos entregamos também derive da insegurança. Achamos que a mágica está nos outros e não em nós. Os bons sentimentos estão neles, não em nós. Quanto menos coisas boas encontramos em nós mesmos, mais procuramos nos outros. Eles têm tudo; nós não temos nada. Nossa existência não é importante. Fomos tão abandonados e negligenciados que também abandonamos a nós mesmos.

Precisar tanto das pessoas, mas acreditar em que não somos merecedores de amor e em que as pessoas nunca estarão presentes para nós, pode transformar-se numa crença profundamente arraigada. Às vezes, achamos que as pessoas não estão presentes para nós quando na verdade elas estão. Nossa necessidade pode bloquear-nos a visão, impedir que vejamos o amor que existe para nós.

Às vezes, nenhum ser humano pode estar presente da maneira que precisamos – para nos absorver, nos cuidar e nos fazer sentir bem, completos e seguros.
Muitos de nós desejam e necessitam tanto de outras pessoas que não se preocupam muito em escolher. Podemos tornar-nos dependentes de pessoas perturbadas – alcoólicos e outras pessoas com problemas. Podemos tornar-nos dependentes de pessoas que na verdade nem amamos ou de quem não gostamos. Às vezes, precisamos tanto de alguém que nos conformamos com qualquer um. Podemos precisar de pessoas que não satisfazem nossas necessidades. De novo, podemos nos sentir em situações em que precisamos de alguém que esteja presente para nós, mas a pessoa que escolhemos não pode ou não fará isso.


Podemos até nos convencer de que não podemos viver sem alguém e que murcharemos e morreremos se aquela pessoa não estiver em nossa vida. Se essa pessoa for um alcoólico ou um ser profundamente perturbado, podemos tolerar seus abusos e insanidade para mantê-la em nossas vidas, para proteger nossa fonte de segurança emocional. Nossa necessidade se torna tão grande que nos conformamos com muito pouco. Nossas expectativas caem abaixo do normal, abaixo do que devemos esperar de nossos relacionamentos. Então, ficamos presos, amarrados. “…já não é mais Camelot. Já não é nem mais pessoa-a-pessoa”, escreveu Janet Geringer Woititz num artigo do livro Co-Dependency, An Emerging Issue [Codependência: uma questão tão relevante]. “A distorção é estranha. Eu fico porque… ele não me bate… ela não me trai… ele não perdeu o emprego.” Imagine ter crédito por comportamentos que são normais para a maioria dos mortais. Mesmo se o pior for verdade; se ele bater em você; se ela o trair; se ele não trabalhar mais. Mesmo com tudo isso, você ainda dirá: “Mas eu o(a) amo!” Quando pergunto, “diga-me, o que essa pessoa tem de tão amável?”, não há resposta. A resposta não vem, mas a força de se estar emocionalmente preso é muito maior do que o poder da razão.2

Não estou sugerindo que todos os relacionamentos íntimos sejam baseados em insegurança ou dependência. Obviamente o poder do amor sobrepõe-se ao bom-senso, e talvez seja assim que deva ser. Claro, se amamos um alcoólico e queremos ficar com ele ou ela, devemos continuar amando essa pessoa. Mas a força da insegurança emocional também pode tornar-se muito maior do que o poder do amor ou da razão. Se nos concentrarmos em nós mesmos e não nos sentirmos emocionalmente seguros, poderemos cair numa armadilha.3

Podemos ficar com medo de terminar relacionamentos que já estão mortos e são destrutivos. Podemos permitir que as pessoas nos magoem e abusem de nós, e isso nunca é melhor.
As pessoas que se sentem presas procuram saídas. Codependentes que ficam presos num relacionamento podem começar a planejar escapar. Às vezes, nossa rota de fuga é positiva e saudável; começamos a dar passos para nos tornar in-dependentes, financeira e emocionalmente. “Desdependência” é um termo que Penelope Russianoff usa em seu livro para descrever esse equilíbrio desejável, onde reconhecemos e satisfazemos nossas necessidades saudáveis e naturais de pessoas e de amor, mas não nos tornamos dependentes delas de forma exagerada ou artificial.

Podemos voltar à escola, arranjar um emprego ou estabelecer outros objetivos que nos trarão liberdade. E geralmente começamos a estabelecer esses objetivos quando ficamos cansados demais de estar presos. Alguns codependentes, entretanto, planejam saídas destrutivas. Podemos tentar escapar à nossa prisão usando álcool ou drogas. Ou nos tornando viciados em trabalho. Podemos procurar escapar tornando-nos emocionalmente dependentes de alguém igual à pessoa de quem estamos tentando escapar – outro alcoólico, por exemplo. Muitos codependentes começam a pensar em suicídio. Para alguns, pôr fim à vida parece ser a única saída dessa situação terrivelmente dolorosa.

A dependência emocional e a sensação de prisão também podem causar problemas em relacionamentos que merecem ser preservados. Se temos um relacionamento que ainda é bom, podemos estar inseguros demais para nos desligar e começar a tomar conta de nós mesmos. Podemos sufocar a nós mesmos e asfixiar ou afastar a outra pessoa. Essa necessidade premente se torna óbvia para os outros. Ela pode ser sentida, percebida. Além disso, dependência em excesso pode matar o amor. Os relacionamentos baseados em carências e insegurança emocional, em vez de amor, podem tornar-se autodestrutíveis. Eles não funcionam. Necessidade demais afasta as pessoas e asfixia o amor. Espanta. Atrai o tipo errado de pessoas. E nossas necessidades reais não são satisfeitas. Nossas necessidades reais se tornam maiores, assim como nosso desespero. Podemos centralizar nossa vida em alguém, tentando proteger nossa fonte de segurança e felicidade. Podemos abrir mão da nossa vida para fazer isso. Ficamos com raiva dessa pessoa. Estamos sendo controlados por ela. Somos dependentes dela. Acabamos ficando com raiva e ressentidos com a pessoa que nos controla e de quem somos dependentes, porque demos a ela nosso poder e nossos direitos.4


Sentir-nos carentes ou dependentes também pode nos expor a outros riscos. Se deixamos nosso lado carente escolher, podemos colocar-nos inconscientemente em situações que nos deixam expostos a doenças sexualmente transmissíveis, como herpes ou Aids. Não é seguro sentirmo-nos tão carentes de relacionamentos íntimos.

Às vezes, podemos trapacear a nós mesmos para disfarçar nossa dependência. Algumas dessas trapaças, de acordo com Colette Dowling, são: transformar alguém em mais do que ele ou ela é (“Ele é um gênio; é por isso que fico com ele.”); tornar alguém menos do que é (“Os homens são como bebês; não conseguem tomar conta de si mesmos.”); e – uma trapaça favorita dos codependentes – tomar conta. Colette demonstra essas características em O complexo de Cinderela, no qual conta a história de Madeleine, uma mulher que estava se libertando de um relacionamento destrutivo com Manny, seu marido alcoólico.

Essa é a última trapaça da personalidade dependente – acreditar que você é responsável por “tomar conta” do outro. Madeleine sempre se sentira mais responsável pela sobrevivência de Manny do que pela sua própria. Enquanto estava concentrada em Manny – a passividade dele, a indecisão dele, o problema dele com o álcool –, ela concentrava toda a energia em encontrar soluções para ele, ou para “eles”, e nunca tinha de olhar para dentro de si mesma. Por isso levou vinte e dois anos para compreender o fato de que, se as coisas continuassem como sempre tinham sido, ela iria acabar sendo prejudicada. Ela iria acabar jamais tendo vivido a vida.

Desde os dezoito até os quarenta anos – anos em que as pessoas devem amadurecer, crescer e experimentar o mundo –, Madeleine Boroff esteve amarrada, fingindo para si mesma que a vida não era o que era, que seu marido se aprumaria dali a pouco e que um dia ela ficaria livre para viver a própria vida – sossegadamente, criativamente.

Por vinte e dois anos, ela não foi capaz de enfrentar as mentiras e, então, bem-intencionada, mas amedrontada demais para viver de forma autêntica, ela virou as costas à verdade. Isso pode parecer dramático em seus detalhes superficiais, mas em sua dinâmica a história de Madeleine não é tão incomum. A qualidade de “ir-com-os-outros” que ela demonstrou, e a aparente incapacidade de sair de um relacionamento extremamente desgastante – esses sinais de impotência são característicos de mulheres psicologicamente dependentes.5

Por que fazemos isso com nós mesmos? Por que nos sentimos tão inseguros e vulneráveis que não podemos dar conta da tarefa de viver nossas vidas? Por que – quando já provamos que somos fortes e capazes pelo simples fato de muitos de nós termos suportado e sobrevivido a tanto – não conseguimos acreditar em nós mesmos? Por que, mesmo sendo especialistas em tomar conta de todo mundo a nossa volta, duvidamos de nossa capacidade de tomar conta de nós mesmos? O que há conosco?

Muitos de nós aprendemos essas coisas porque quando éramos crianças alguém muito importante para nós foi incapaz de nos dar o amor, a aprovação e a segurança emocional de que precisávamos. Então prosseguimos com nossas vidas da melhor maneira que podemos, ainda procurando, vaga ou desesperadamente, algo que nunca tivemos. Alguns de nós ainda estamos batendo com a cabeça contra o cimento, tentando conseguir esse amor de pessoas que, como mamãe ou papai, são incapazes de dar o que precisamos. O ciclo se repete até que seja interrompido. Chama-se assunto interminado.

Talvez nos tenham ensinado a não confiarmos em nós mesmos. Isso acontece quando sentimos algo e nos dizem que isso é errado ou impróprio. Ou quando identificamos uma mentira ou uma inconsistência e nos dizem que estamos loucos. Perdemos a fé naquela parte profunda e importante de nós mesmos que tem sensações apropriadas, percebe a verdade e confia em sua capacidade de lidar com as situações da vida. Podemos logo passar a acreditar no que nos disseram a nosso respeito – que não sabemos nada, que somos crianças irresponsáveis, que não merecemos confiança. Olhamos as pessoas ao nosso redor – às vezes doentes, perturbadas, sem controle – e pensamos “elas estão bem. Devem estar. Elas me disseram isso. Então devo ser eu. Deve haver algo fundamentalmente errado comigo”. Abandonamos a nós mesmos e perdemos a fé em nossa capacidade de cuidar de nós mesmos.

Algumas mulheres foram ensinadas a ser dependentes. Aprenderam a centralizar suas vidas ao redor de outras pessoas e a ser cuidadas. Mesmo depois do movimento de liberação feminina, muitas mulheres, intimamente, temem ficar sós.6

Muitas pessoas, não apenas mulheres, têm medo de ficar sozinhas e de tomar conta de si mesmas. Isso faz parte do ser humano.

Alguns de nós podem ter entrado num relacionamento adulto com a segurança emocional intacta, apenas para descobrir que se relacionavam com um alcoólico. Nada destruirá nossa segurança emocional mais rapidamente do que amar um alcoólico ou alguém com qualquer outro distúrbio compulsivo. As doenças demandam que centralizemos nossas vidas em torno delas. Reina a confusão, o caos, o desespero. Mesmo os mais saudáveis de nós podem começar a duvidar de si mesmos depois de viver com um alcoólico. As necessidades ficam insatisfeitas. O amor desaparece.

As necessidades se tornam maiores e a insegurança também. O alcoolismo cria pessoas emocionalmente inseguras. Ele nos transforma em vítimas – quem bebe e quem não bebe – e duvidamos da nossa capacidade de tomar conta de nós mesmos.

Se concluímos, por qualquer razão, que não podemos tomar conta de nós mesmos, tenho boas notícias. O tema deste livro é o encorajamento para começarmos a fazer isso. O propósito deste capítulo é dizer que podemos tomar conta de nós mesmos. Não somos incapazes. Sermos nós mesmos e sermos responsáveis por nós mesmos não precisa ser tão doloroso e amedrontador. Podemos cuidar de tudo, de qualquer coisa que a vida colocar em nosso caminho. Não temos de ser tão dependentes das pessoas a nossa volta. Não somos como irmãos siameses, podemos viver sem qualquer ser humano em particular. Como disse uma mulher: “Durante anos disse a mim mesma que não podia viver sem um determinado homem. Eu estava errada. Tive quatro maridos. Todos eles estão mortos e eu continuo vivendo.” Saber que podemos viver sem alguém não significa que temos de viver sem aquela pessoa, mas pode libertar-nos para amar e viver da forma que funcionam.

Agora, deixe-me dar o que chamarei de “resto” das notícias. Para se tornar independente, não há uma maneira mágica, fácil ou que funcione da noite para o dia.
A segurança emocional e nosso nível de insegurança são fatores importantes que devemos manter em mente ao tomarmos nossas decisões.
Às vezes, nos tornamos financeira e emocionalmente dependentes de alguém, e então temos de enfrentar essas preocupações reais – duas preocupações que podem ou não estar relacionadas entre si.7 As duas devem
ser levadas a sério; cada uma exige consideração. Minhas palavras ou nossas esperanças não modificarão a realidade. Se somos financeira ou emocionalmente dependentes, isso é um fato, e os fatos devem ser aceitos e levados em consideração. Mas acredito que podemos nos empenhar em tornarmos menos dependentes. E sei que podemos nos tornar independentes, se quisermos.

(Continua no próximo artigo)

Do livro: Codependência Nunca Mais, Pare de Controlar os Outros e Cuide de Você Mesmo, [recurso eletrônico] Melody Beattie, 5ª Edição, Viva Livros, 2017

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