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Foto por Caroline Hernandez em Unsplash

Como conseguiu manter a clareza de uma criança sem se deixar intimidar pelos adultos à sua volta? Onde arranjou coragem para fazer isso?

A inocência é simultaneamente coragem e clareza. Se formos inocentes, não precisamos de ter coragem. Também não é preci­so ter clareza, pois nada pode ser mais claro do que a inocência, que tem uma clareza cristalina. Por isso, a questão é protegermos a nossa inocência. A inocência não é uma coisa a alcançar. É uma coisa a aprender. Não é parecida com um talento: a pintu­ra, a música, a poesia, a escultura. Não é como essas coisas. Parece-se mais com respirar, algo com que nascemos.

A inocência é a natureza de todos nós. Ninguém nasce noutro estado que não o de inocência. Como podemos nascer se não na inocência? O nascimento significa que entrámos no mundo como uma tábua rasa, sem nada escrito. Temos apenas futuro, e não passado. É isso o que significa a inocência. Assim, comecemos por tentar compreender todos os sentidos da inocência.

O primeiro é: não há passado, apenas futuro. Viemos ao mun­do com um olhar inocente. Viemos todos do mesmo modo, com a mesma qualidade de consciência activa.

Você pergunta como consegui fazer com que ninguém pudesse corromper a minha inocência, a minha clareza; onde fui buscar essa coragem? Como consegui não ser humilhado pelos adultos e pelo seu mundo?

Não fiz nada, por isso não há que saber como. Aconteceu ape­nas, pelo que não tenho qualquer mérito nisso.

Talvez seja o que acontece a todas as pessoas, mas depois elas interessam-se por outras coisas. Começam a regatear com o mun­do dos adultos. Eles têm muitas coisas para nos dar; nós só temos uma coisa para dar, que é a nossa integridade, a nossa auto-estima. Não temos muito, apenas uma única coisa – podemos dar-lhe qualquer nome: inocência, inteligência, autenticidade. Temos ape­nas uma coisa.

E a criança tem naturalmente um grande interesse por tudo o que a rodeia. Está continuamente a querer ter isto ou aquilo; isso faz parte da natureza humana. Se olharmos para uma criança pe­quena, ou mesmo para um recém-nascido, podemos ver que co­meça a tactear em busca de algo; as suas mãos tentam encontrar alguma coisa. Já iniciou a viagem.

Durante o seu percurso, a criança irá perder-se, porque não podemos obter nada neste mundo sem ter de pagar. E a pobre criança não consegue entender que o que está a oferecer é tão precioso que, se puser o mundo inteiro num dos pratos da balança e a sua integridade no outro, esta é muito mais pesada, mais pre­ciosa. A criança não tem maneira de o saber. É esse o problema, pois ela tem apenas o que tem. Toma-o por certo.

Pergunta-me como consegui não perder a minha inocência e clareza. Não fiz nada; pura e simplesmente, desde o início… Eu era uma criança solitária porque fui criado pelos meus avós ma­ternos. Essas duas pessoas idosas estavam sozinhas, e queriam uma criança que seria a alegria dos seus últimos dias. Por isso, os meus pais concordaram: eu era o filho mais velho, o primogénito; e eles mandaram-me para lá.

Não me recordo de qualquer relação com a família do meu pai durante os primeiros anos da minha infância. Vivia com esses dois idosos – o meu avô e o seu velho criado, que era um belo homem – e com a minha avó… com essas três pessoas. E o abismo era tão grande… que fiquei absolutamente só. Não tinha companhia, não podia ter. Eles tentavam ser muito afectuosos comigo, mas não era possível.

Fiquei entregue a mim mesmo. Não podia dizer-lhes muita coi­sa. Não tinha mais ninguém, pois a minha família era a mais rica daquela pequena aldeia; e era uma aldeia tão pequena – não tinha mais de duzentas pessoas ao todo – e tão pobre, que os meus avós não me deixavam dar-me com as outras crianças. Elas eram sujas, e é evidente que eram quase pedintes. Por isso, não podia ter amigos. Isso provocou um grande impacto em mim. Em toda a minha vida, nunca fui amigo de ninguém e nunca conheci ninguém que passasse a ser meu amigo. Tinha conhecidos.

Durante os primeiros anos, estava tão sozinho que comecei a apreciar a minha condição, que constitui de facto uma grande felicidade. Não foi, por isso, uma maldição, revelando-se antes uma bênção. Comecei a gostar, e comecei a sentir-me auto-suficiente; não dependia de ninguém.

Nunca me interessei por jogos, pelo simples motivo que, desde a minha infância, não tinha com quem brincar. Ainda me vejo nesses primeiros anos, sentado sem fazer nada.

Tínhamos uma bela parcela de terreno onde ficava a nossa casa, mesmo em frente a um lago. Estendia-se por vários quilóme­tros, o lago… e era tão belo e silencioso. Só de vez em quando é que se via uma fila de grous brancos a voar, com os seus gritos de acasalamento, e a paz era, por momentos, perturbada; tirando isso, era exactamente o lugar ideal para a meditação. E depois de as aves perturbarem essa paz – um grito de acasalamento de uma ave… a seguir, a paz era ainda mais profunda.

O lago estava cheio de flores de lótus, e eu passava horas senta­do, com tanto contentamento interior, como se o mundo não tives­se a menor importância: os lótus, os grous brancos, o silêncio…

Os meus avós estavam conscientes de uma coisa, de que eu apreciava a minha solidão. Viam continuamente que eu não sentia desejo de ir à aldeia conhecer outras pessoas ou falar com outras pessoas. Mesmo quando eles queriam conversar, as minhas respos­tas eram sim ou não; também não tinha interesse em conversar. Então, aperceberam-se de uma coisa: de que eu gostava da minha solidão, e de que era seu dever sagrado não me incomodarem.

Com as crianças, às vezes dizemos: “Estejam calados porque o vosso pai está a pensar, o vosso avô está a descansar. Estejam quietos, sentem-se em silêncio.” Durante a minha infância, aconte­ceu o contrário. Agora não sei dizer como nem porquê; foi pura e simplesmente assim. Foi por isso que disse que aconteceu apenas não tenho qualquer mérito nisso.

Essas três pessoas idosas estavam sempre a fazer sinais umas para as outras: “Não o incomodes, ele está tão bem.” E começa­ram a amar o meu silêncio.

O silêncio tem uma vibração própria; é contagioso, em especial o silêncio de uma criança que não é forçado, que não acontece por dizermos: “Se incomodares ou fizeres barulho, bato-te.” Não, isso não é silêncio nem cria a vibração de alegria a que me refiro; quando uma criança está sozinha em silêncio, apreciando-o por qualquer motivo, a sua felicidade não tem motivo; isso cria grandes ondas de vibração à sua volta.

Num mundo melhor, todas as famílias aprenderão com as crian­ças. Temos demasiada pressa em ensinar-lhes coisas. Ninguém parece aprender com elas, mas elas têm muito para nos ensinar. E nós não temos nada para lhes ensinar.

Só por sermos mais velhos e mais poderosos, começamos a torná-las exactamente iguais a nós, sem pensarmos sequer no que somos, onde chegámos, qual é nosso estatuto no mundo interior. Somos pobres, e queremos o mesmo para os nossos filhos?

Ninguém pensa; caso contrário, as pessoas aprenderiam com os mais pequenos. As crianças trazem muita coisa do outro mun­do, porque acabaram de chegar. Ainda trazem o silêncio do ven­tre, o silêncio da própria existência.

Portanto, foi por mera coincidência que passei sete anos sem ser perturbado – sem ninguém para me importunar, para me pre­parar para o mundo dos negócios, da política ou da diplomacia. Os meus avós estavam mais interessados em deixar-me ser o mais natural possível, em particular a minha avó. Ela é um dos motivos – estas pequenas coisas afectam todos os nossos padrões de vida -, ela é um dos motivos do respeito que tenho por todas as mulheres.

Era uma mulher simples, sem formação escolar, mas imensa­mente sensível. Ela fez com que fosse claro para o meu avô e para o criado:
– Todos vivemos um tipo de vida que não nos levou a lado nenhum. Estamos tão vazios como antes, e agora a morte aproxima-se. Que esta criança não seja influenciada por nós. Que influên­cia podemos ter…? Só podemos torná-lo igual a nós, e nós não somos nada. Vamos dar-lhe a oportunidade de ser ele próprio.

Estou imensamente grato a essa mulher idosa. O meu avô esta­va sempre preocupado com o facto de vir a ser responsabilizado mais cedo ou mais tarde:

Eles vão dizer: “Deixámos o nosso filho convosco e vocês não lhe ensinaram nada.”

A minha avó não o permitia… porque havia um homem na aldeia que podia, pelo menos, ensinar-me os rudimentos da lín­gua, da matemática e um pouco de geografia. Ele fizera o quarto ano – os quatro primeiros anos do que era a educação primária na índia. Mas era o homem mais culto daquela aldeia.

O meu avô bem se esforçou:

Ele pode vir ensiná-lo. Ao menos, ficará a saber o alfabeto e um pouco de matemática, para quando voltar para os pais não dizerem que desperdiçámos sete anos por completo.

Mas a minha avó disse:

Eles que façam o que quiserem ao fim dos sete anos. Durante sete anos, ele tem de ser como é, e não vamos interferir.

E o seu argumento era sempre:

Tu sabes o alfabeto, e depois? Sabes matemática, e depois? Ganhaste algum dinheiro; queres ensiná-lo a ganhar algum di­nheiro e a ser como tu?

Era o suficiente para manter o velhote calado. O que havia de fazer? Sabia que estava em apuros porque não podia argumentar, e também sabia que era ele que seria responsabilizado, e não ela, pois o meu pai perguntar-lhe-ia: “O que fizeste?” E teria sido esse o caso, mas, felizmente, morreu antes de o meu pai poder perguntar.

No entanto, o meu pai estava sempre a dizer:

–   Aquele velho é o responsável; estragou a criança com mimo. Mas então eu já era suficientemente forte, e explicava-lhe:

Não diga uma palavra contra o meu avô à minha frente. Ele salvou-me de ser estragado pelos seus mimos – é essa a sua verdadeira raiva. Mas o pai tem outros filhos – estrague-os a eles. E depois diga-me quem foi estragado.

Ele tinha outros filhos, e ainda teve mais. Eu costumava dizer-lhe a brincar:

–   Por favor, tenha mais um filho, para fazer uma dúzia. Onze filhos? As pessoas perguntam: “Quantos filhos?” Onze não parece bem; uma dúzia é mais impressionante. Mais tarde, eu costumava dizer-lhe:

Continue a estragar os seus filhos; eu sou rebelde, e assim permanecerei.

O que encaramos como inocência não é senão rebeldia. O que vemos como clareza não é senão rebeldia. De certo modo, mantive-me fora das garras da civilização.

E quando já era suficientemente forte… E é por isso que as pessoas insistem: “Vê se tens mão na criança quanto antes, e não percas tempo, pois quanto mais cedo o fizeres, mais fácil será. Quando a criança ficar suficientemente forte, será difícil vergá-la aos teus desejos.”

A vida tem ciclos de sete anos. No sétimo ano, a criança é perfeitamente forte; então, não se pode fazer nada. Já sabe para onde ir, o que fazer. É capaz de argumentar. Consegue distinguir o que está certo e o que está errado. E a sua clareza alcançará o clímax quando ela tiver sete anos. Se não a incomodarmos duran­te os primeiros anos, aos sete ela será tão cristalina em relação a tudo, que toda a sua vida será vivida sem arrependimento.

Sempre vivi sem arrependimento. Tentei descobrir: alguma vez fiz alguma coisa de mal? Não é que as pessoas pensem que tudo o que fiz seja correcto, não é isso: só que nunca pensei que tivesse feito algo de errado. O mundo inteiro acha que estava errado, mas eu tenho a certeza absoluta de que estava certo; era a coisa mais acertada a fazer.

Fonte: 
Osho, O Livro da Criança – Uma Visão Revolucionária da Educação Infantil, Pergaminho, 2004

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