
Princípios básicos para cuidar de si mesmo
Raiva (continuação)
Muitas pessoas em programas como o Alcoólicos Anônimos acham que nunca deveriam sentir raiva durante sua recuperação. O conceito dos programas de recuperação é de que as pessoas aprendam a lidar com a raiva imediatamente, antes que esta se transforme em ressentimentos prejudiciais.
Como codependentes, podemos ter medo de nossa raiva e da raiva de outras pessoas. Talvez acreditemos em um ou mais dos mitos. Ou talvez tenhamos medo da raiva por outras razões. Alguém pode ter batido ou abusado de nós quando estava com raiva. Algum de nós pode ter batido ou abusado de alguém quando sentimos raiva. Às vezes, apenas o nível de energia selvagem que acompanha a raiva de alguém pode ser assustador, principalmente se a pessoa estiver bêbada.
Tanto nós como nosso parceiros reagimos à raiva. É uma emoção provocante. Pode ser contagiosa. E muitos de nós temos muita raiva por que reagir. Temos muito da raiva que acompanha a tristeza. Temos a que vem do estágio de perseguição de resgatar ou tomar conta. Muitos de nós estamos presos numa ponta daquele triângulo. Temos sentimentos irracionais de raiva que podem ser injustificados e causados por pensamentos desastrosos de reação: os deveria, horríveis, nuncas e sempres. Nós justificamos a raiva – todos os sentimentos alucinados que qualquer um sentiria se alguém fizesse aquilo com ele ou ela. Temos a raiva que encobre a dor e o medo. Sentimentos de tristeza e medo se transformam em raiva, e muitos de nós temos muito medo e tristeza. Temos a raiva que vem de nos sentirmos culpados. A culpa, tanto a merecida quanto a não merecida, facilmente se converte em raiva.5
Os codependentes sentem um bocado de culpa. E acredite ou não, os alcoólicos também. Só que eles são mais propensos a convertê-la em raiva. E reagimos à raiva. Ficamos com raiva porque a outra pessoa sente raiva. Então ela fica com mais raiva, e nós ficamos com mais raiva ainda porque ela ficou com mais raiva. E logo todo mundo está com raiva, e ninguém sabe por quê. Mas estamos todos com raiva – e sentindo-nos culpados por isso.
Às vezes, preferimos continuar com raiva. Contribui para que nos sintamos menos vulneráveis e mais poderosos. É como um escudo protetor. Se estamos com raiva, não nos sentiremos feridos ou com medo, ou pelo menos isso não se nota tanto. Infelizmente, muitos de nós não temos aonde ir com toda essa raiva. Nós a engolimos, mordemos a língua, enrijecemos os ombros, a empurramos para o estômago, a deixamos chacoalhar em volta de nossa cabeça, fugimos dela, a medicamos, ou lhe damos um biscoitinho.
Culpamos a nós mesmos, transformamos a raiva em depressão, nos jogamos na cama, desejando morrer, e ficamos doentes por causa dela. Por fim, pedimos a Deus que nos perdoe por sermos tão horríveis, por sentirmos raiva acima de tudo.
Muitos de nós vivemos num verdadeiro dilema com nossa raiva, principalmente se pertencemos a um sistema familiar que diz: “Não sinta; principalmente não sinta raiva.” O alcoólico certamente não quer nos ouvir dizer como nos sentimos enraivecidos. Provavelmente acha que de qualquer forma nossa raiva é exagerada, e discutir isso pode aborrecê-lo. Nossa raiva estimula a culpa do alcoólico. O alcoólico pode até dominar-nos com sua raiva, apenas para que nos sintamos culpados e reprimidos.
Frequentemente, não podemos ou não queremos dizer a nossos pais como nos sentimos. Eles podem ficar com raiva de nós por termos um relacionamento com alguém que tenha um problema com álcool ou outra droga. Ou podem somente ver o lado bom do alcoólico ou viciado e achar que somos insensatos e depreciativos. Nossos amigos podem até adoecer de tanto nos ouvir reclamar. Alguns de nós sentem tanta vergonha que acham que não podem dizer ao pastor ou padre o quanto estão com raiva. O religioso apenas nos chamaria de pecadores, e não precisamos ouvir mais isso. É tudo o que andamos dizendo a nós mesmos. Muitos de nós não pensariam em se voltar para o Poder Superior e dizer o quanto estão com raiva.
Então, o que faremos com todo esse ódio dentro de nós? A mesma coisa que fazemos com quase tudo que tem a ver conosco: reprimimos e nos sentimos culpados por isso. A raiva reprimida, assim como outras emoções reprimidas, causam problemas. Às vezes, nossa raiva pode vazar inapropriadamente. Gritamos com alguém com quem não queremos gritar.
Fechamos a cara, torcemos os lábios e contribuímos para que as pessoas não desejem ficar perto de nós. E batemos as panelas, porque já perdemos muita coisa de valor e não podemos quebrar mais nada.
Outras vezes, nossa raiva pode mostrar sua face de formas diferentes. Podemos passar a não querer, a ser incapazes, ou a recusar-nos a desfrutar de sexo.6 Podemos tornar-nos incapazes de gostar de qualquer coisa. Depois acrescentamos mais ódio à nossa pilha já avultada, imaginando o que há de errado connosco e continuando com nosso comportamento hostil. Quando as pessoas nos perguntam o que está errado, nos retesamos e dizemos: “Nada. Estou muito bem, obrigado.” Às escondidas, podemos dar início a pequenas ou grandes coisas desagradáveis para nos vingar de quem estamos com raiva.
Se a raiva for reprimida por tempo demais, acabará fazendo mais do que vazar. As emoções ruins são como mato. Não desaparece só porque o ignoramos: crescerá selvagemente e tomará conta de tudo. Nossos sentimentos de raiva um dia poderão explodir. E poderemos dizer coisas que não queremos dizer. Ou – como geralmente acontece – poderemos dizer
o que realmente queremos dizer. Podemos perder o controle e desandar a brigar, a cuspir, a berrar, a arrancar os cabelos e a quebrar tudo. Ou podemos fazer algo para nos machucar. Ou a raiva pode transformar-se em amargura, ódio, desprezo, repulsa ou ressentimento.
Ainda assim, não compreendemos: “O que há de errado comigo?” Podemos repetir isso o quanto quisermos. Não há nada de errado connosco. Como o título do livro diz, Of Course You’re Angry [Claro que você está com raiva].7 Claro que estamos com muita raiva. Estamos assim porque qualquer pessoa em sã consciência estaria com muita raiva.
Um excelente trecho de Marriage on the Rocks [Dificuldades no casamento] diz: “Não se pode viver com o alcoolismo ativo sem ser profundamente afetado. Qualquer ser humano bombardeado com o que você tem sido bombardeado deve ser elogiado apenas pelo fato de sobreviver. Você merece uma medalha pelo mero fato de estar aqui para contar a história.”8
A raiva é um efeito profundo do alcoolismo. É também o efeito de muitos outros distúrbios compulsivos ou problemas com que os codependentes convivem.
Mesmo se não estivermos vivendo com um sério problema ou com uma pessoa seriamente doente, é normal sentir raiva. A raiva é um dos efeitos mais profundos que a vida tem sobre nós. É uma de nossas emoções. E sentiremos quando ela aparecer no nosso caminho – ou então a reprimiremos. “Não confie em pessoas que nunca ficam com raiva. As pessoas ou ficam com raiva ou se tornam vingativas”, diz minha amiga Sharon George, especialista no campo de saúde mental.
Temos todo o direito de sentir raiva. Temos todo o direito de sentir toda a raiva que sentimos. E os outros também. Mas também temos a responsabilidade – principalmente com nós mesmos – de lidar com nossa raiva apropriadamente.
Continuação no próximo artigo.
Do livro: Codependência Nunca Mais, Pare de Controlar os Outros e Cuide de Você Mesmo, [recurso eletrônico] Melody Beattie, 5ª Edição, Viva Livros, 2017